Meio sorriso

horas antes e tu eras assim: um sorriso. um aceno entre colegas que perpassam em diferentes vagões no curso natural da vida. no fazer diário. eras leveza até, embora teu semblante nem sempre me inspirasse sorrisos. mas a tua alegria nunca dependeu de mim... agora és uma lembrança só. um rosto que insiste em repousar na mente. um sorriso que permanece, sobrevoando o imaginário dos que ficam - indignados sempre com a dimensão do vazio. o oco das perdas e da fragilidade da vida. da existência humana e física. o peso do silêncio e da dor que o tempo não faz esquecer. hoje (que ironia) és um nome que se lê nas páginas dos jornais. na boca de um locutor de rádio. ou um colega apresentador de tv. és assim: um número a mais nas estatísticas... e é preciso que eu diga para que entendam que falo da morte - inexorável e presente demais. falo de mim e de ti, que partiste sem dizer adeus. sem ter tempo para ficar triste ou se despedir. falo desse vazio e do gosto de cabo de guarda-chuva que me ficou na boca. e das horas que não passam nesta tarde de outubro. como cenas tuas, que passeiam na mente contra a minha vontade. como via de mão dupla interrompida. a tua voz vibrante, ainda morna, ressoa aos meus ouvidos. coisas tolas. bem poucas e simples de serem ditas. um “bom dia”. um “oi, tudo bem?”, seguido do meu nome... coisas que são ditas entre colegas e amigos. e eu nunca fui teu amigo. talvez isso agora me doa um pouco. uma dor fina gelando a espinha. talvez, se amigo fosse, tivesse feito parar o teu carro para um bate-papo ou mudado o teu destino naquela tarde dispersa e fria, em que passamos um pelo outro apenas. nos acenamos num meio sorriso. e nem ao menos fui tomado de alguma suspeita ou premonição. de que a morte te seguia de pertinho. como uma criança reclamando brinquedo na véspera do seu dia... talvez, não.

(para Tojal. que me acenou com um meio sorriso - meia despedida - horas antes, no dia que partiu...)