À nordestina

quiz dedicar a ti a chuva que caiu por toda a noite e amanheceu comigo, escorrendo pela janela. mas acontece que o sol surgiu e fez questão de sustentar o dia com seus raios de fios dourados, rijo como a rigidez da vida. a vida de sertanejos e nordestinos, como nós. mas é que sobraram gotas ainda, esquecidas de secar, dispostas nos parapeitos das casas, nas reentrancias das folhas e pétalas de algumas rosas. então pensei num desejo quase profano o quanto seria bom, e é esse o desejo que tenho, que as gotículas que se esqueceram de secar irriguassem abundantemente o teu coração ressequido, vazassem por tua pele, escorressem pelos poros entupidos do teu corpo envergado de sede e de maus tratos... e façam brotar o amor! desejo mais. um amor cheio de vida como se parisse um filho. um amor desinteressado e ativador de todos os interesses nobres que há em ti. o autoamor. amor por ti mesmo. porque o amor só vale se for grande, como o nosso. só vinga se for irrigado o bastante com as gotículas que se esquecem de secar. para matar a sede e a fome que chegam com as aflições de todo dia. como a vida nordestina, que sobrevive tirando o alimento diário das sombras que a chuva desenha no leito rachado dos rios. e dos pratos que a imaginação inventa com as folhas da palma. desejo como quem se mira no espelho. que ames a ti mesmo, como quem ama ao próximo. que te permitas crescer o bastante para abrir as janelas, a porta do quintal e deixar o sol entrar.

(para Carlos, que trás na alma a água corrente das chuvas. e veio a mim como um banho

numa noite de luz...)