5 de janeiro de 2006

Lacunas

Queria escrever alguma coisa legal. Mas, sabe, dá-me a impressão de que levaste também esse pedaço meu que pensa. Porque o meu sentidor, termômetro da vida, ficou bastante prejudicado depois que partiste. Sabe, eu não te quero como um sentimento platônico e, ao que parece, também não era a tua intenção... Mas, enfim, foste como quem vai às compras de mês e perde-se ao dobrar a esquina. Procurei-te, não sabes, pelos hospitais, nas delegacias, nos supermercados, nas páginas de classificados, e nada. Sumiste do mapa, levando contigo o mapa que me poderia levar a ti. Levaste minha capacidade olfativa de cão farejador. Levaste minha intuição até. Para que nada nem ninguém pudesse te trazer de volta... Foi assim que partiste. Sem deixar pistas nem vestígios. sem dizer adeus. Como quem vai ao cinema depois de matar a mãe. Como quem entra na história e se esquece do mundo, perde a noção do tampo, não sabe se é noite ou dia. Como quem entra num shopping center às oito da manhã e só sai à meia noite. Como quem perde a razão. O equilíbrio... Foi isso o que pensei quando voltaste, de repente, numa mensagem eletrônica. A tua voz era doce e havia certa emoção (foi o que li naquele escrito). Voltavas como se tivesses falado comigo há apenas algumas horas, naquele mesmo dia... Nem assunto tinhas. E era de amor que falavas. Bem ao nosso estilo – amantes das metáforas. Foi assim que voltaste, meses depois. Havia um certo alívio de ainda me encontrar ali. Como quem sai do banho num dia de calor. Como quem chega pro almoço no intervalo do dia. Como quem pega o telefone pra dizer bom dia e escuta do outro lado uma voz amiga... Mas chegaste com o mesmo mistério nos olhos (senti pela disposição das letras). A mesma possibilidade de partir mais uma vez. A mesma indecisão no tremor da voz. As mesmas mãos ligeiras, inquietas, inseguras. Foi por isso que não li a tua mensagem. Nem atendi à tua ligação. E deitei atravessado na cama, ocupando todo o vazio. Por isso foi que mudei de assunto quando alguém falou teu nome... É que me veio um medo, de repente. Vindo não sei de onde. Como uma premonição (seria insegurança minha?). Um sentimento frio percorrendo a espinha, insinuou que partirias de novo sem aviso. Como quem vai ao mercado de manhã bem cedo... Então senti-me como quem é surpreendido no meio de uma festa, tarde da noite. Alterado pelo excesso do álcool. A alegria falsa descoberta num falso sorriso, trêmulo, precedido por uma mentira... Foi assim que me chegou o medo que tive. Um tanto envergonhado, mas pedindo socorro. Um socorro tímido e surdo. Acho que nem ouviste... E foi por isso, só por isso, que deixei que ficasse, o medo. Ocupando o outro lado da cama. O lado que era teu. Sentado à mesa defronte a minha cadeira. Acompanhando-me aos lugares todos que eu ia e preenchendo os meus sonhos, sempre cheios de susto. Ocupando o teu lugar dentro de mim. Preenchendo as lacunas que deixarias, um dia, se viesses a partir.

@ para Dionísio, que também conhece o vazio das ausências... E para N.E.O., que tem me ensinado que o medo não é um bom conselheiro/companheiro.

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